A viagem de Priamo
A duríssima
jornada para trazer de volta o corpo de um filho
Telefones jamais deveriam tocar certas horas. Mas tocam. Filhos
jamais deveriam partir antes que já estivéssemos a postos, à espera deles, no
lugar demarcado por nossa fé ou esperança. Mesmo assim, eles partem. Essas duas
verdades me colheram feito uma avalanche de tristeza enquanto eu caminhava, num
fim de tarde de sábado e sol ralo, pelas ruas do centro de Belo Horizonte.
Atendi o celular. Do outro lado da linha, a voz chorosa de Geni, minha mulher,
abriu as comportas do pesadelo: “Zé, você precisa voltar pra São Paulo’. ela
disse, tentando, desesperada e inutilmente, manter uma nesga de calma. Sua
frase seguinte, no entanto, me atingiu com o impacto de um meteoro. “O Paulinho
morreu, meu amor, e você vai ter de ir a Londres buscá-lo.’ Uma sombra
gigantesca encapsulou o meu espírito.
Desabei no choro, sentado ao meiofio. Senti-me ludibriado pelo destino.
Por que ele consentira que um amor de 28 anos, vívido e intenso, fosse
guilhotinado assim, justamente quando eu e Paulo parecíamos estar finalmente
acertando nossos relógios afetivos? Por que comigo? Por que agora? Em suma: as
infindáveis perguntas e especulações ressentidas que são feitas sempre que a
dor só é menor do que nossa própria impotência. Regressei a São Paulo nessa
mesma noite, no carro de Val, tio querido de Paulo, meu ex-cunhado e morador de
Belo Horizonte. Partimos com os primeiros azuis da aurora. Ao longo do trajeto,
fui aos poucos me recompondo. Apesar da tristeza, uma lucidez e uma serenidade
consistentes foram me envolvendo feito um manto suave. Chegamos a São Paulo no
final da manhã.
Chorei muito ao reencontrar Geni e Pedro, meu caçula. Vi quão grande era
o desalento estampado em suas faces. Geni, uma segunda mãe de Paulo. Pedro em
seu batismo de morte. Tomei uma ducha rápida, comi algo e, a caminho do
aeroporto, fiz uma escala na nossa vila Bela Vista, para, com um pesar imenso,
informar minha mãe da partida de seu neto. Dona Dida, sempre tão sólida,
desabou. Paulo, sua mulher Anna e o filho Rodrigo eram seus vizinhos. Também
moravam numa das seis casas da vila.
Com sua juventude e, principalmente, com Rodrigo, eles coloriam a rotina
tediosa de minha mãe. Foi doloroso ver de relance o sobradinho ocre com as suas
portas e janelas azuis fechadas. Desviei rapidamente o olhar e segui para
Cumbica. Foi no trajeto para o aeroporto que um pensamento luminoso me fisgou.
Percebi que havia naquela viagem um senso de missão quase sagrado: trazer
meu filho de volta aos braços da família e de todos que o amavam.
Era a derradeira
homenagem que eu poderia lhe prestar. Lembrei-me, então, de uma daspassagens
mais pungentes da inigualável lliada, de Homero. Após matar Heitor, príncipe
e herói troiano, o grego Aquiles arrastou o seu corpo diante das muralhas da
cidade e recusou-se a devolvê-lo à família. Foi então que Príamo, o rei de
Troia e pai de Heitor, trocou o seu manto real pelos trajes de um mendigo,
deixou a segurança das muralhas e foi sozinho ao acampamento grego em busca dos
despojos de Heitor. “Vim aqui, humildemente, implorar-lhe que devolva o corpo
de meu filho’: disse Príamo a Aquiles. “Sua humildade me comove”, respondeu-lhe
o grego. “Pode levá-lo, pois quem tem um pai com essa coragem merece todo o meu
respeito”. Autossugestão ou fé, não importa. O certo é que, após me lembrar
dessa história, me senti fortalecido.
Parti para Londres com a clara sensação de que Deus segurava minha mão.
Nada disso, obviamente, me poupou dos ritos e procedimentos penosos que me
aguardavam na capital inglesa. Mas, com toda a certeza, uma nesga de sentido em
meio à total ausência dele mitigou bastante a minha dor. A assistência do patrão
de Paulo e sócio na operação brasileira da produtora Hungry Man (na qual Paulo
era um dos diretores de comerciais) revelou-se outro bálsamo durante esse meu périplo
amargo. Fui aos poucos reconstruindo os últimos dias de meu filho. Paulo
passara, de terça a sexta, escolhendo locações na cidade e o elenco do filme –
para o lançamento mundial do game Fita street soccer. No sábado de manhã,
como não atendesse o telefone, teve a porta de seu quarto aberta pelos funcionários
do hotel e foi encontrado inconsciente na cama. Imediatamente chamados, os
paramédicos tentaram reanimá-lo durante todo o trajeto. Sem sucesso. Paulo foi
declarado morto no Royal London Hospital, em Whitechapel, um distrito londrino
junto à City, o coração financeiro da cidade.
No dia de minha chegada, fiz duas coisas. Por ser muçulmano, primeiro fui
à grande Mesquita de Londres, um templo imponente cravado nas bordas do Hyde Park.
Lá fiz minhas orações matinais. Mais fortalecido, fui nessa mesma manhã
identificar o corpo de Paulo no necrotério do hospital. Era um lugar sóbrio e
nem um pouco tétrico. A visão de meu rapaz numa maca, no entanto, me
desnorteou. Derramei, então, aquelas a que, em seu poema “Pátria minha”, Vinícius
de Moraes refere-se como “longas lágrimas amargas”. Segurei as mãozinhas já
frias de meu menino. Depois, num impulso irresistível, abri os seus olhos e vi,
pela última vez, o seu azul cristalino. Fiquei feliz por ver que sua beleza e
brilho não haviam se dissipado. Mas triste ao saber que a primeira autópsia não
fora conclusiva. Só no dia seguinte um segundo exame revelou a causa mortis.
Paulo tivera uma isquemia coronariana (falta de oxigenação do músculo cardíaco)
associada a um trombo (coágulo que obstruiu de vez sua artéria). Resumindo: um
infarto. Paulo seguiu, nesse quesito, os passos de meu pai e de meu irmão Beto,
confirmando o frágil histórico cardíaco que paira sobre minha família paterna.
Restaram como conforto a certeza de sua morte ter sido muito rápida e a de que
ele não sofreu praticamente nada, pois o colapso o deixou inconsciente antes
que seu óbito se consumasse.
Os gregos tinham um Deus da morte súbita. Uma bênção para quem parte.
Uma patada de urso no peito de quem fica. O alívio definitivo só veio no fim da
manhã de quinta-feira, véspera de meu voo de volta ao Brasil. Só após a segunda
autópsia, essa conclusiva, a funerária pôde retirar o corpo, a fim de prepará-lo
para a viagem, que faria no mesmo avião que eu, logo mais à noite. Pude ver
Paulo no final da manhã, já preparado. Estiquei meu casaco no chão e orei junto
a ele, agradecendo a Deus por tudo ter dado certo. Segurei, então, sua mão
esquerda e, alisando seus cabelos junto à testa, já ligeiramente grisalhos,
chorei muito enquanto o beijava. Depois vi que minhas lágrimas haviam borrado
levemente a sua maquiagem.
A prova de fogo final foi preparar a mala de meu menino. Como tudo que
havia em seu quarto havia sido levado, na manhã de sua morte, pela polícia
londrina, em busca de alguma evidência, suas roupas e demais pertences (que
retirei no distrito policial) estavam todos remexidos. Dobrei cada uma das peças
com ternura, salpicando várias delas com as minhas lágrimas. Elas misturavam
tristeza e pesar ao alívio de ver encerrada a jornada mais difícil de minha
vida.
Por volta das 22 horas de quinta-feira, o avião decolou do aeroporto
londrino de Heathrow rumo a São Paulo. Eu estava exausto, mas satisfeito por
saber que Paulo seguia comigo na mesma aeronave. Eu sabia muito bem que minha
longa e triste travessia estava apenas começando.
Enquanto o avião sobrevoava o estuário do Rio Tâmisa, salpicado por luzinhas de navios de guerra e mercantes, respirei aliviado. Minha
viagem de Príamo chegara ao final. Estamos indo de volta pra casa.
matéria publicada na REvista Época de 30.07.12
Um depoimento triste, sentido e comovente!
ResponderExcluirImpossível não se emocionar... me tocou profundamente!!
Tenha um final de semana muito feliz, minha amiga!
Beijos no teu coração.
Ilca querida..
ExcluirO depoimento deste pai tocou fundo no meu coração tb.
Obrigada amiga...
Uma semana abênçoada para vc tb!!!
Lendo este depoimento eu viajei com esse pai, senti a dor dessa família, parecia estar lendo um romance de tão linda a narração! Como seria bom se fosse somente um romance! Que tudo não passasse de uma ficção. Mas... Nesta triste narrativa, o conforto, a força e a coragem desse pai, com certeza veio do poder da oração. A presença de Deus em nossa vida é o que nos fortalece nos momentos de escuridão, este é o caminho mais seguro para enfrentar o sofrimento. Deus não desampara nunca.
ResponderExcluirQuerida irmã...
ExcluirSó podia vir de vc um comentário tão cheio de sentimentos de Fé, Amor e muita sensibilidade,e amor ao próximo.
Vamos rezar muito por todos os pais orfãos de filhos que partiram prematuramente...
Sou muito feliz e agradecida ao nosso DEUS por ser minha irmã....
bjs..
Certamente essa deve ser a pior experiência que um homem pode ter... Lendo este texto maravilhoso, vemos a força que Deus nos dá para podermos dar conta de um evento como este...
ResponderExcluirQue essa coragem e força, sempre nos acompanhem...
Belissimo Blog, Parabens!
Obrigada pelo carinho.
ExcluirRealmente nós só temos uma noçào da dor deste pai a dimensão só ele sabe...
Espero contar sempre com a sua visita no nosso blog
Zelinda.
Meu comentário sobre a mensagem de José Ruy Gandra, que faz parte do livro Coração de Pai:
ResponderExcluirSe já nos comove a descrição feita com o brilho literário do autor do livro "Coração de Pai" imagine-se quem, como eu, passou por uma experência parecida. quando em 1989, um filho meu, de nome Maurício, tombava numa auto estrada de Moçambique, país africano que se tornara independente de Portugal e que se via envolvido numa cruenta guerra de guerrilhas onde duas facções rivais lutavam pelo poder. Meu filho era engenheiro agrônomo e estava no país a serviço de uma empresa contratada para fazer assentamentos de refugiados de guerra. A viatura onde ele se encontrava, pertencia ao governo de Moçambique e fora emboscada por um grupo guerrilheiro da facção contrária. Do grupo que se encontrava na viatura, alguns sairam incólumes, outros ficaram feridos e ele, meu filho, foi a única vítima fatal. O atentado aconteceu no dia 11 de julho de 1989, uma terça-feira mas o corpo só chegou ao Brail no dia 15,
um sábado. Embora a empresa na qual trabalhava meu filho, a embaixada brasileira e as autoridades moçambicanas se empenhassem odo que não foi possível sequer vê-lo, o caixão teve que ser enviado num avião pequeno para um aeroporto internacional da Africa do Sul para ser embarcado num avião de linha da VARIG que, com escala em São Paulo viria até Curitiba. Desembarcado o corpo foi enviado para o Cemitério Parque Iguaçu onde foi velado e sepultado. A descrição da triste página vivida pelo escritor, dá bem a idéia do que sente um pai em idênticas circunstâncias. No meu caso, ocorridos já 23 anos, não é raro
revivermos pela lembrança os episódios e ainda vertermos as nossas lágrimas.
Parabenizo não somente o escritor pelas páginas comoventes que nos deixa como também às pessoas que tornaram possível o alcance delas por todos nós, os leitores.
José Daher
Olá querida Zelinda que saudades! Espero revê-la em breve! Nossa, o depoimento desse pai é muito comovente! Como se já não bastasse o sofrimento da perda, ainda ter que resolver tudo isso...na maioria das vezes, sempre tem alguém, família, amigos,que ajudam com as questões "práticas", pois as pessoas que sofreram a perda maior não estão em condições de nada. Mas esse pai foi mesmo um herói, tendo que fazer essa longa viagem até o seu filho, sabendo que não o veria mais com vida quando chegasse ao seu destino. Parabéns ao pai escritor de tão belas e comoventes palavras.
ResponderExcluirProf. Nazir, me comovi também com seu relato acima, desejo-lhe que tenha muita paz e muita luz nesse dia dos pais.
Abraços, e fique com Deus!
Nazir,
ResponderExcluirObrigada por compartilhar conosco sua comovente história.
Obrigada pela coragem de relembrar tudo isso as vésperas dos Dias dos Pais...
Obrigada por ser um grande amigo,
abs,
veronica
Zelinda,
ResponderExcluirObrigada, tudo muito comovente e é o que ouvimos em nossos encontros do Grupo, logo que comecei a ler, lembrei-me do Prof.Nazir, ele já havia relatado a experiência dele. Desejo-lhes muita saúde e paz, para continuar este trabalho maravilhoso que é desenvolvido neste Grupo.
Dorothéa Aparecida Simonetto, 12 de agosto de 2012
Como o Escritor José Ruy relata: é uma benção para quem parte, mas uma patada de urso no peito de quem fica. Resumindo toda a dor que um pai ou uma mãe sentem pela partida de um filho(a) amado(a) e como somos impotentes diante de tamanha tragédia em nossas vidas.
ResponderExcluirZelinda,
ResponderExcluirhá tempos ja que a conheço, por motivos comerciais. Com o tempo, fui conhecendo seu trabalho e de todo esse grupo extremamente maravilhoso, que voluntariamente, com certeza leva conforto
e força às pessoas enlutadas.
Não há como imaginar a dor de pais que veêm seus filhos partirem antes para a espiritualidade.
A descrição desses pais acima, nos dão a dimensão da coragem, confiança em Deus e amor aos filhos e familia que carregam nos seus corações.
A eles, deixo a minha vibração de muita força, esperança e solidariedade para que continuem a viver.A você e ao grupo de assistência ao luto os parabéns pelo trabalho confortador.
Um grande abraço,
Arlete
Obrigada Arlete...
ResponderExcluirPor conhecer meu trabalho e o grupo que coordeno, é muito gratificante saber que amigos e amigas especiais como vc nos apoiam nesta empreitada.
Deus te de muita saúde,e fique recuperada logo ok...
Continue nos visitando...
Com carinho...