O canarinho amarelo
Prezada D. Zelinda,
Semana passada morreu uma amiga de infância, e fiz para ela e sua família, o texto que envio no anexo, o qual gostaria de compartilhar com todos seus leitores.
Espero que o aprecie.
Abraços,
Evaldo D´Assumpção
Semana passada morreu uma amiga de infância, e fiz para ela e sua família, o texto que envio no anexo, o qual gostaria de compartilhar com todos seus leitores.
Espero que o aprecie.
Abraços,
Evaldo D´Assumpção
Aos poucos fui habituando-me àquele pequeno pássaro canoro.
Todas as tardes, quando eu me sentava a mesa para escrever, ele aparecia e
ficava naquela árvore, bem em frente à minha janela, exalando seus suaves
trinados.
Foi tamanha a nossa interação, que sem suas melodias minha
inspiração custava a brotar, meus textos demoravam a fluir sobre o papel. E quando
mesmo assim, surgiam alguns, eles não tinham a qualidade dos que eram
despertados pelo meu canário.
Atrevo-me a dizer meu, porque assim já o sentia. Parecia-me
que ele chegava esperando encontrar-me em minha cadeira, olhando para a janela
em busca da inspiração que demorava.
Certamente, muitas vezes ele se frustrou não me encontrando
ali. E me pergunto: será que mesmo assim ele cantou, na esperança de que eu
estivesse ausente apenas por alguns instantes, e logo retornaria? Ou quem sabe
ele gorjeava um pouco, esperava, e observando que ninguém aparecia em minha
sala, partia em busca de outro amigo para com ele compartilhar seu canto?
Assim foram meses e meses. Somente nos dias de muita chuva,
meu canário não aparecia. Mas eu o compreendia. Afinal, a chuva e o vento frio
não seriam saudáveis para o seu canto.
Contudo, fosse verão escaldante fosse inverno rigoroso, ele
nunca faltava. Pensei até em lhe dar um nome, mas desisti. Por que encarcerá-lo
numa denominação, se ele era livre em seus longos voos e não precisava ser
chamado para aparecer?
Chamá-lo de canarinho amarelo, já lhe bastava, mesmo sendo
um tanto redundante, pois um canário que se preza é sempre amarelo...
Também jamais me ocorreu capturá-lo num alçapão, e depois –
tamanha crueldade! – egoisticamente encarcerá-lo numa gaiola só para tê-lo,
exclusiva e permanentemente junto de mim. Tenho a certeza de que, se o fizesse,
aqueles chilreios se calariam em sua garganta, pois somente a liberdade nos
permite criar e compartilhar o que de mais belo podemos fazer.
Nenhum ser vivo nasceu, nem nasce para a escravidão. Seja
ela de que tipo for, sempre amesquinha a vida, que de natureza e de origem é
livre e livre deve ser preservada sempre.
Por isso mesmo abomino toda e qualquer prisão, a que os hipocritamente
chamados de animais domésticos possam ser submetidos.
Pior ainda quando, além da prisão, são submetidos a
violências ridículas e brutais, como serem vestidos como o animal humano,
receberem adornos e joias – que despautério! – como se tivessem o mais
insignificante conhecimento do significado daquelas tolices, que só o tolo
animal humano até mata e rouba para possuir e desfilar, provocando inveja aos
outros mais tolos ainda, de sua mesma espécie.
Imagino o quanto se sentiriam ridículos e reclamariam se
pudessem raciocinar e se expressar, sendo levados a psicólogos para aliviar seu
estresse, provocado pelas próprias estultícias a que são submetidos por seus
pretensos donos. Ou a esteticistas, acupunturistas, salões de beleza para
banhos e penteados exóticos e outras brincadeiras (só pode ser!) de péssimo
gosto para quem foi criado para correr pelos campos, beber e banhar-se nas
águas dos rios, a brisa batendo solta em seu rosto quando corre, quando
voa.
Não, jamais engaiolaria aquele canário, pois ele recebera do
próprio Criador de tudo e de todos, a carta de alforria definitiva, no mesmo
ato da criação. Livre ele era, livre ele deveria ser até o último dia de sua
vida sem grilhões.
E, certamente esse dia chegou. Pois numa tarde morna de
outono, exatamente igual à tantas outras em que ele viera e mais bonito me dera
o seu canto, o canário amarelo não apareceu. Imaginei-o em outras paragens, em
outros voos mais distantes. Todavia, nas tardes seguintes ele permaneceu
ausente. Não ouvia seus trinados e isso me fazia sofrer. Perdi até um pouco da
minha vontade de escrever, ficando somente na janela, esperando a sua volta,
coisa que nunca mais aconteceu.
Muitos meses passados, tantos dias de sol, de calor e de
frio, dias de flores perfumando a primavera, nada mais o trouxe de volta.
Imaginei então que o seu tempo terminara. Certamente meu
canário fora levado pelas mãos suaves do Criador, para outras paragens, para
embalar a paz em lugares onde ela jamais faltará.
Meu... por que “meu”?
Ele não era propriedade minha, como eu mesmo não sou propriedade de
ninguém. Como nada nem ninguém é propriedade de ninguém, onde só impera a
impermanência que a tudo e a todos dá a liberdade nem sempre respeitada, quase
nunca se fazendo respeitada.
O canarinho amarelo partiu. Melhor será dizer como o poeta
dos sertões, Guimarães Rosa: “ele se encantou”.
Para mim só restou a saudade que no princípio foi dolorosa,
mas pouco a pouco foi se fazendo gostosa, pois me levava aos dias em que seu
canto embalava meus escritos, fazendo-me entender que ao invés de chorar, devo
rir e agradecer pelo tempo em que pude gozar de sua singela companhia. Hoje já
não a tenho, mas outros pássaros já me visitam, novas flores brotam nas
árvores, a brisa suave que vem do mar às vezes me faz imaginar que com ela vem
o trinar do canarinho amarelo. Eu não o esqueci e nem o esquecerei. Ficará para
sempre comigo, a sua pequenina imagem e a delicada harmonia de suas melodias.
E, pensando bem, estou certo de que a brisa do mar não me
vem sozinha... Afinal, acreditando como o faço, na inexistência da morte, com
certeza ele está em algum lugar, agora muito mais livre do que antes, e à minha
espera para fazermos novas parcerias: ele com o seu canto, eu com meus escritos. E ambos livres e felizes como sempre fomos,
mesmo não tendo percebido antes, essa maravilhosa realidade!
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Evaldo D´Assumpção – Médico e Escritor
Evaldo D´Assumpção – Médico e Escritor
Oi minha amiga querida,
ResponderExcluirBelíssimo texto!!!
Uma grandiosa e tocante homenagem de profunda sensibilidade.
Adorei! Parabéns ao autor!
Retornando... estive ausente por uma semana, precisava me revigorar, renovar minhas energias.
Bjs e muita paz!
OI AMIGA...
ExcluirPRECISAMOS MUITAS VEZES DAR ESSE TEMPO PARA NÓS SEMPRE É MUITO GRATIFICANTE PARA REVER OS VALORES DA ALMA E DOS NOSSOS CORAÇÕES.
gOSTEI MUITO DESTE TEXTO ELE CONSEGUE PASSAR REALMENTE O VALOR DA AMIZADE DE UM ENTE QUERIDO QUANDO NÃO ESTÁ MAIS ENTRE NÓS.
OBRIGADA BJS ..