JÁ NÃO ERA MAIS TERÇA-FEIRA, MAS TAMBÉM NÃO ERA QUARTA

Revista Piauí 
Por Tiago Ferro
ON YOU_DAEHYUN KIM_MOONASSI_2009
Para Isa, Manu e Mika
A telefonista da Amil me informa que para excluir um dependente do plano familiar é preciso apresentar a Solicitação de Exclusão preenchida e assinada, que pode ser baixada na área restrita do site, um documento com foto do titular do plano, informações para contato e cópia do atestado de óbito original. Para eles é apenas isso: apagar um campo do sistema de dados. Para nós, já era uma pista do caminho duro que nos aguardava. A vida havia mudado.
Após diversas incursões pelo labirinto invisível da burocracia, descubro que o atestado já está disponível no cartório próximo de casa, no bairro de Pinheiros. Vou com a Mika, minha mulher. Retiramos uma senha e esperamos a nossa vez. A cadeira de plástico afixada a uma barra no chão que segura outros cinco assentos chacoalha porque o homem gordo sentado ao meu lado não consegue parar de mexer a perna. Não me irrito. Seria apenas mais um exemplo de falta de controle que a vida nos jogava na cara.
Na tevê, o plantão urgente da Globo noticia mais uma virada nos acontecimentos políticos que, até o dia 31 de março, estavam no centro das minhas preocupações. Na tela – reduzida por uma faixa que exibe o número chamado e o guichê de atendimento – a presidente e os conspiradores liderados por Michel Temer me parecem figuras de um filme antigo, desbotado, algo monstruosos por causa da distorção da imagem. É um enredo que não me interessa mais. Fico assustado com a capacidade da mente humana em reordenar prioridades. O sol que atravessa a película cinza dos vidros e o tempo seco e quente demais para um mês de abril em São Paulo reforçam a sensação de estranhamento. Somos chamados: “Senha 27, guichê 9.” Vamos até lá e informamos que viemos buscar o atestado de óbito de nossa filha de 8 anos. Sem desviar o olhar do monitor, a atendente nos diz que devemos aguardar. Seremos chamados novamente. Nesse mesmo cartório registrei o nascimento dela.
Na fatídica noite, coloco o colchão de cima do beliche no chão, ao lado da cama de baixo, para facilitar o controle da febre de madrugada. Já com as duas meninas acomodadas, escolho um filme qualquer no Netflix: Matrix, parte 1. Dias depois volto ao filme para saber em que momento eu havia parado quando nossa filha apareceu na sala reclamando que não achava posição para dormir. Morpheus dizia a Neo que ele vivia num sonho. Continuar assistindo de onde parouComeçar do início.
Nossa história ganha uma súbita dimensão pública. Recebo da minha mãe, via WhatsApp, um vídeo com o trecho do Jornal da Record que noticiou o óbito, menos de 24 horas depois de ocorrido. Em nenhum momento procuramos a imprensa. A reportagem, apesar de respeitosa, me incomoda. Nossa filha virou um tipo social: criança de 8 anos; da classe média paulistana; com acesso às melhores escolas e hospitais; vítima da gripe. Não! É a nossa Manu.
Talvez um dia eu compreenda de onde veio o impulso, a necessidade de contar “a todo o mundo” quem era a Manu. Começo a postar freneticamente no Facebook: histórias, fotos, áudios. Há algo de catártico no processo. Antes da morte, eu havia evitado a exposição de nossas filhas na rede – ao menos até onde podemos controlar. Após três ou quatro dias, e cerca de doze posts, estou exausto. Muitos likes, mensagens, solicitações de amizade; e poucas amizades desfeitas, não por iniciativa minha e sem que eu consiga compreender os reais motivos. Pode parecer contraditório após toda essa exposição promovida por mim, mas eu não quero virar “o pai da garota falecida”.
Interrompo as postagens. Não consigo mais olhar para as fotografias dela. Provocam uma dor que também é física: sinto tontura e falta de ar. Tenho a sensação de algo parado no estômago. Penso nos meus avós que perderam uma filha de apenas 1 ano na década de 40. Provavelmente não houve tempo de se fazer qualquer registro fotográfico do bebê. Em quanto tempo será que eles começaram a perder aquele rosto da memória? A dor da falta de imagens será maior do que a do excesso? Sou assaltado por imagens da Manu que chegam de todos os lados. Não há como evitar. O Facebook pelas manhãs oferece a seus usuários memórias de três, quatro, muitos anos atrás. Algumas delas me pegam desprevenido. 
A missa de sétimo dia foi iniciativa de um grupo de mães da Escola Vera Cruz. As crianças haviam sido poupadas do velório e do cemitério. O ritual católico era uma maneira de colocá-las em contato com a perda de uma colega de maneira menos traumática. A igreja está lotada. Muitas crianças choram na primeira fila. De certo modo, Mika e eu nos sentimos impostores buscando refúgio e consolo num ritual que desconhecemos por completo. Não cantamos, não sabemos quando levantar e sentar, tampouco acertamos as respostas e os gestos coreografados pela fala do padre. Constrangidos, evitamos a fila da hóstia. Deve-se pegar com a mão? Com qual delas? Ou basta abrir a boca? Aquele biscoito nos trará algum alívio? Quando um funcionário (ou seria um voluntário?) aparece perto do altar com uma cestinha, as pessoas começam a se deslocar até lá para depositar notas de dinheiro. Tanta dedicação dirigida a nós e, sem graça, me dou conta de que só tenho um cartão de débito e outro de crédito. A missa de alguma forma nos traz alívio. Finalmente uma noite em que consigo dormir, apesar do sono curto.
Parte da minha geração, nascida nos anos 70 e criada por pais que já não escondiam dos filhos seus medos e dúvidas, que brigavam e até se separavam, foi poupada de qualquer educação religiosa. À mesa de jantar entrava o sexo e saía Deus. Não se trata exatamente de uma geração de ateus, pois ser ateu implica diversas responsabilidades e reflexões – é uma geração que simplesmente não precisou pensar no assunto. Praticar o bem e ter atitudes éticas seria natural para construir uma sociedade melhor para todos e, na hora H, cada um em âmbito privado resolveria do seu jeito o inevitável da vida. O problema é que, na hora H, meus mentores intelectuais me deixaram na mão. Você não compra um novo significado para a vida em três vezes no cartão e recebe em casa após cinco dias via Sedex. E pensar como eu amei os céticos e os materialistas. Algo havia dado errado nessa história toda.
A mãe de uma coleguinha de escola da Manu, que durante os dias mais duros se revelou uma grande amiga, nos dá de presente O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. Leio ávido por respostas. Tento seguir as instruções do autor e encontrar a paz por meio da meditação. Sinto-me, em princípio, participando de uma fraude, como se atuasse num filme B, um arremedo de Brad Pitt em Sete Anos no Tibet. Mas da leitura encontro um gancho com a frase do Morpheus em Matrix. O monge fala que a nossa vida na Terra é toda ela um sonho. Tantos séculos dedicados a isso, eles não poderiam estar errados. Estava resolvido: o caminho seria o budismo.
A mesma amiga que nos deu o livro indica uma terapeuta na Vila Madalena para nos iniciar nos primeiros passos daquela fé e também nos acompanhar ao famoso templo de Cotia, cidade vizinha a São Paulo. Dou um Google. O templo é lindo e inspirador. Certamente vou me sentir bem ali. Generosa, a terapeuta nos recebe em uma casa onde oferece massagens, ioga e sessões de energização. Há cheiro de incenso, uma jarra com água aromatizada e alguns folhetos sobre meditação espalhados na mesa. Tudo de muito bom gosto. Conversamos um pouco. Ela repete a linha de argumentos do monge do livro. Pergunto sobre o templo. Aquele grande que achei no Google não é o templo dos tibetanos. Me desanimo. Por fim, ela nos oferece um ritual com fogo pela alma da nossa filha. Por que não?
No quintal da casa, tento de forma desajeitada acender uma fogueira com toras rústicas. Nada funciona. A terapeuta me ajuda e o fogo pega pra valer. Ela começa a entoar cânticos budistas e a jogar algumas essências na direção das chamas. Lembro do Woody Allen de Hannah e Suas Irmãs buscando, desajeitado e afobado, um caminho espiritual. Como entoar palavras de significado desconhecido? O que nós, nascidos e criados na classe média paulistana, tínhamos a ver com o Tibete? Eles acreditam que a alma de um ser humano pode reencarnar numa formiga. Eu consigo comprar essa ideia? Eu quero? Seja como for, após o ritual, a sensação é boa novamente.
Resolvemos manter em casa uma vela acesa para nossa filha, sugestão da terapeuta budista. Nunca havíamos feito isso. Onde se arranja uma vela de sete dias? No supermercado compramos seis Heinekens, três leites desnatados e três integrais, geleia, requeijão, pão integral, um pack com três Toddynhos, produtos de limpeza e duas velas. Inexperientes, retiramos a vela da embalagem e ela derrete formando uma espécie de desenho disforme de cera. Não dura sete, mas apenas três dias. Minha mãe diz que não se pode retirar a embalagem e nos empresta um porta-velas com base de metal e redoma de vidro. O ritual de acender a vela organiza o dia.
Decidimos que nós dois acompanharíamos a Isa, nossa filha mais nova, de 4 anos, à natação. No caminho, já paramentada com maiô, roupão e chinelinhos com a estampa do Charlie & Lola, ela fala que não queria que a irmã tivesse morrido, e que não quer ir sem a Manu para a aula. Nó na garganta. Tentamos explicar que, antes do nascimento dela, a irmã foi sozinha, durante vários anos, aprender a nadar. Ela parece aceitar o argumento. O corredor na ACM onde os pais se espremem por uma boa visão dos filhos nadando é quente. E nesse dia está especialmente claustrofóbico. Da janela vemos as duas piscinas, a dos pequenos e a dos grandes. Não consigo me desviar da ausência na terceira raia da piscina grande.
As duas tomavam banho juntas no vestiário. A mais velha já lavava a menor e ficava sozinha para se trocar, como um desafio de independência. Agora temos que voltar a fita e começar de novo com apenas uma filha ainda dependente de nossa ajuda. Mas é um falso começar de novo. O tempo segue sempre em sentido único. Entramos mudos no carro. Uma frente fria chegará a São Paulo nos próximos dias. Resolvemos interromper a natação por algumas semanas.
Um amigo psicanalista me telefona. Havíamos combinado de levar a Isa para algumas sessões com ele. Conversamos um pouco e conto que ao menos estamos dormindo, comendo e trabalhando. Ele se mostra satisfeito com a informação. Diz que nossa tragédia abalou muita gente. Comento o que uma amiga, ela também psicanalista, nos dissera alguns dias antes: aquele que perde um filho nunca foi nomeado, diferentemente do órfão ou do viúvo – trata-se de uma dor sem tamanho e sem nome.
Como em qualquer casa com crianças, a nossa tem brinquedos espalhados por todos os cantos – material para desenho, massinha, bonecas. Cada um nos lembra uma festa, um Natal, um aniversário, uma viagem. O cavalinho de pau, a gaveta lotada de canetas e giz de cera, a flauta e o pandeiro, os livros e os DVDs, nada disso é velho. Diferentemente dos pertences deixados por um idoso, já cobertos pela poeira do esquecimento, os de uma criança parecem vibrar de tanta energia concentrada.
No quartinho onde guardamos toda a bagunça menos utilizada e os calçados de todos nós, me deparo com um par de tênis para a aula de educação física que havíamos comprado apenas algumas semanas antes. Está novo, a sola um pouco suja. Rodamos por muitas lojas – nós que detestamos os shoppings – até que ela encontrasse o modelo certo. Descobri depois que era idêntico ao da Laurinha, a melhor amiga dela. Me consolo pensando que todos esses objetos já são ou ainda serão usados pela caçula, o que de certa forma nos poupa do penoso ato de jogá-los fora. Dessa forma nossa casa ganha uma certa aura encantada. Passado, presente e futuro se fundem a todo instante num simples boneco do cowboy Woody da série de filmes Toy Story, caído atrás da poltrona.
No apartamento dos meus pais, observo duas fotos em porta-retratos. Numa delas, estou com 6 anos, mais ou menos, ao lado do nosso cachorro da raça collie – o Life –, no quintal da casa dos meus avós maternos. Na outra, já adolescente, na piscina de um hotel em Águas de São Pedro. Olho para aquela criança e para o adolescente tentando encontrar naqueles rostos algum sinal do destino que os aguardava. Quem poderia imaginar que as coisas iriam caminhar dessa forma? Há, sob a aparência do livre-arbítrio, uma história invisível pronta para cada um de nós? Como acessar esse livro do destino? Fico com pena das figuras do passado que já não reconheço mais como sendo eu mesmo. Nunca poderiam imaginar que no auge do controle sobre a vida levariam tamanha rasteira.
A música sempre foi uma constante no dia a dia da nossa família. Construímos juntos uma trilha sonora desses últimos anos. E a Manu, com apenas 1 ano e 8 meses, havia cantado uma versão na íntegra de Carinhoso, do Pixinguinha. O fato era cercado de mistério. Um cunhado pegara emprestado meu CD que contém a canção e ficara meses com ele. Quando finalmente o devolveu, toquei a música, que era uma das minhas favoritas – e também a predileta de outra pessoa muito musical da família, minha avó materna Fernanda, já falecida. Nossa filha, uma criança que ainda não completara 2 anos e nunca tinha ouvido Carinhoso em casa, começou a acompanhar a canção. Nós nos olhamos incrédulos. No dia seguinte fomos à escola, e lá soubemos que a canção não estava sendo trabalhada com as crianças. Ou melhor, fora, sim, mas cerca de um ano antes, quando eles ainda tinham um professor de música na equipe. Esse mesmo professor certa vez havia comentado que nossa filha ficava muito animada na aula: sorria e se chacoalhava, sentadinha no bebê-conforto. À noite ela cantou novamente e nós gravamos.
Agora toda e qualquer canção é ressignificada pelo que nos aconteceu. Tudo expressa perda, ausência, partida, reencontros e esperanças. Chico: Que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco/E evita atracar no cais; Djavan: Enfim, de tudo o que há na Terra/Não há nada em lugar nenhum/Que vá crescer sem você chegar/Longe de ti tudo parou; Milton: O que importa é ouvir/A voz que vem do coração/Pois seja o que vier,/Venha o que vier/Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar; Paul McCartney: You were only waiting for this moment to arise; e finalmente o Roberto: Janelas e portas vão se abrir/Pra ver você chegar/E ao se sentir em casa/Sorrindo vai chorar.
Arquivar playlist.
Retiro da estante Revolução na Cozinha, de Jamie Oliver. No meio do livro há uma rosa branca, prensada e já seca. Nossa filha menor a havia trazido da escola e nos contara que sua irmã havia jogado aquela flor lá da estrela onde estava morando. Pouco antes, a diretora nos havia contado que colheu a flor de uma das coroas no dia do velório e criou a história da entrega à irmãzinha. A flor ganha para nós um significado mágico. Vira um objeto encantado. A página marcada pela flor traz uma receita com um título estranho: “A filosofia de uma grande salada.” Fazia meses que vínhamos consultando esse mesmo livro para ensaiar alguns pratos, embalados pela animação culinária da primogênita.
Dou um Google em Chico Xavier e encontro o vídeo Biógrafo Ateu de Chico Xavier Conta que Filho Viu Espírito. À noite resolvemos ir a um centro kardecista muito antigo, localizado no bairro de Perdizes. No site, informações sobre uma série de atividades, horários, venda de livros e preces. Quando chegamos uma moça na recepção pergunta se queremos passar pelo “atendimento fraterno”. Claro que sim. Não havíamos falado nada entre nós, mas ambos esperávamos por uma notícia dela. Estaria bem? Onde estaria, afinal? No atendimento, um senhor nos explica que foi-se o tempo em que o espiritismo promovia esse tipo de ligação direta com o “lado de lá”. Chegara o momento de estudar os ensinamentos. Saímos do centro e choramos abraçados na calçada.
Já em casa, destroçados e desamparados, recebemos uma mensagem no WhatsApp. Era a mãe de uma coleguinha da escola. Ela começa se desculpando por escrever tarde da noite, mas sentiu que precisava nos falar naquele momento sobre o sonho que sua filha havia tido quatro dias antes. A garota não parava de chorar desde o ocorrido, até que um dia acordou de manhã e contou para a mãe que não estava mais triste. A Manu havia aparecido em seu sonho e lhe dissera para não chorar porque estava tudo bem. Ela estava feliz e num lugar lindo. <3 Enviar.
Chega um e-mail da Beatriz Sarlo, intelectual argentina que havíamos conhecido na Flip de 2015, quando lançamos um livro dela pela nossa editora de e-books. Nossa filha lhe havia dado um colar de miçangas feito por ela. A mensagem é curta. Diz que ficara sabendo do caso, que lamentava muito e que imaginava o inferno em que estávamos vivendo. Para os católicos, inferno e paraíso são destinos finais da alma. Uma vez em um desses locais, é para a eternidade. Sarlo não é católica. Fico imaginando então qual seria o local onde estamos agora – me parece mais um aeroporto, uma estação, um espaço de passagem. Mas nessa plataforma o painel dos destinos é caótico: datas e horários se embaralham sem parar e os países estão grafados num idioma incompreensível. Ernst Gombrich, o historiador da arte, escreveu que os modernos haviam transformado em metáforas todo o pensamento mágico dos antigos. Inferno e paraíso deixavam de ser possíveis destinos para representar estados mentais.
Procuro na internet: “Influenza B + miocardite.” Está tudo lá. Em alguns casos ela pode ser severa e, camuflada pelos sintomas da gripe, levar a óbito. O médico da família me liga e diz que realmente na literatura médica há referência a miocardite em casos da gripe B. Mas é raríssima. Diz que o vírus do herpes também pode causar encefalite. Mas, em ambos os casos, a probabilidade é a mesma de ser atingido por um raio. Nossa filha havia sido atingida por um raio invisível. O médico se oferece para nos atender e ajudar no que for preciso. Apesar de sua generosidade, agradeço e nos despedimos. A medicina ocidental não sabe lidar com a vida em sua inteireza. Ela precisa de órgãos doentes.
O dr. Wu, médico acupunturista, com quem já havíamos nos tratado por causa de dores musculares, se prontifica a nos receber em sua clínica. O rosto amigo, o abraço solidário, as agulhadas “para ajudar a enfrentar com mais calma esse período difícil”, além dos florais de Bach, nos trazem conforto. Para nós, quatro gotas quatro vezes ao dia de “aceitação e paz de espírito”; para a Isa, a mesma dose de “sou feliz e saudável”. Voltamos mais algumas vezes a sua clínica. E, de fato, ele nos ajuda a atravessar as primeiras semanas.
Minha sogra é uma japonesa de mais de 80 anos que fala mal o português e pratica diariamente o desapego e o olhar além da matéria. Nesse momento ela é um grande exemplo – estar na presença dela nos acalma e conforta. Ela nos visita e oferece energização. Para marcar os 49 dias da morte – uma data-chave para os budistas –, preparamos um almoço para a família japonesa e meus pais. Macarrão com brachola, patê de aspargos, pão sueco, batata Ruffles para as crianças, guaraná e cerveja. A mãe de minha mulher entoa canções para que a alma da neta siga seu caminho e entenda que não pertence mais a este mundo. De alguma forma, a ideia de que ela estaria partindo mais uma vez, e agora para mais longe ainda, me comove. Choro. Nos despedimos.
No fim de semana seguinte, faço com a Isa um programa que havia feito dezenas de vezes com sua irmã: ir a pé até a Livraria da Vila para escolher um livro e tomar alguma coisa no café. A caçula gosta de ir de bike. Ela ainda é a caçula? Alguém que nunca foi filha única um dia pode vir a ser? Quando a linguagem autoriza essa mudança? Será que em algum momento serei obrigado a dizer que ela é nossa única filha?
Na livraria, sugiro alguns livros e, talvez pelo formato bem horizontal, diferente, ela escolhe A Bicicleta Epiplética. Abro e leio no prólogo: “Já não era mais terça-feira, mas ainda não era quarta.” Volto a pensar no inferno de Beatriz Sarlo e de Gombrich. Definitivamente, seja lá qual for a melhor metáfora, nosso lugar não seria definitivo. Isa toma um chocolate gelado e, assim como a irmã, não tem paciência de esperar que eu escolha algum livro para mim. Bato os olhos no novo de Emmanuel Carrère: O Reino. Havia lido em alguma resenha que o livro trata das origens do cristianismo e da própria conversão e perda da fé pelo autor. Me interessa.
O brinquedo favorito da Manu, há pelo menos três anos, era o Lego. Ela montava casas e castelos com 4 mil peças. Na segunda visita ao centro espírita – “que não mantém mais contato com o mundo invisível” –, resolvemos participar de uma sessão de uma hora que incluía passes, água fluidificada e duas palestras curtas. A primeira palestra começa e recorre, como analogia para a construção de um sentido para a vida, justamente ao brinquedo Lego – “que a maioria aqui talvez já tenha ouvido falar”.
Temos que decidir se vamos ou não à Flip. Autora confirmada na programação já temos. Mas como encarar Paraty e a festa com esse terrível desfalque na equipe? Todas as atividades – exceto as obrigatórias por razões de trabalho – eram planejadas por ela, e eram uma enorme curtição: passear de barco, tomar sorvete, comprar bichinhos de madeira e cestos de palha dos índios, ver o artista de rua chileno que pinta paisagens com spray. Desse artista trouxemos para casa duas obras, compradas pelo avô. Abro o guarda-roupa dela para procurar não sei o quê e vejo as duas pinturas. São paisagens serenas e bucólicas – me admiro que uma criança de 6 anos seja capaz de gostar de algo assim. Penso rapidamente, antes de guardar as paisagens de volta: gostaria que ela estivesse num lugar como aquele.
Na estante da nossa sala há vários barquinhos de madeira com nome e data, todos recordações de Paraty. Em 2015 o avô não pôde ir conosco porque a cachorrinha estava doente. As meninas ficaram chateadas e escolheram um barco especial para presenteá-lo: um modelo pequeno de caravela dentro de uma garrafa de vidro.
Resolvemos ir à Flip. Parte de nossa memória afetiva está cravada nas casas e ruas de Paraty. Durante o luto, o passado que nunca pode ser vivido duas vezes torna-se o local mais perigoso de ser visitado. Imagino que, paradoxalmente, quando as lembranças se tornarem apenas tristes, teremos conseguido voltar a caminhar, mesmo que para sempre nos equilibrando precariamente, como fazemos pelo calçamento irregular do centro histórico.
Entramos na loja de barquinhos. Nunca podemos prever o que iremos sentir ao revisitar algum lugar que tenha marcado as nossas vidas com as crianças. Isa escolhe uma caravela e eu outra. Minto. Digo que é para mim. Me questiono se estou agindo corretamente comprando um presente para a Manu. Farei isso nos próximos anos? Já em São Paulo escrevo na base do barco “MANU”. Vacilo na hora de colocar a data. Há algo de interdito nesse procedimento. Reflito um pouco e logo abaixo do nome escrevo “SEMPRE”. Assim resolvo a questão: um único e definitivo presente. Não conto a ninguém. Apenas quem virar o barco descobrirá o segredo.
As meninas já estavam de novo na cama, cada uma na sua, e nós na nossa. O despertador estava programado: dali a 56 minutos controlaríamos a febre. Antes de soar o alarme, ela entrou voando em nosso quarto e se jogou na cama. Tomamos um susto. Era seu último suspiro, mas naqueles segundos isso nem nos passava pela cabeça. Mais que um pedido de ajuda ou alerta, era uma despedida.
Alguns meses antes havia morrido Bionda, cachorrinha e companheira fiel dos meus pais. Durante um dia inteiro, depois de uma complicada cirurgia para a retirada de um tumor, ela ficou num pronto-socorro para animais. Quando meu pai foi visitá-la, mesmo sedada ela abriu os olhos, abanou o rabo e voltou a dormir. Meia hora depois morreria. A veterinária disse que, numa situação como aquela, era comum os animais morrerem depois de uma visita. Minha mãe me ligou aos prantos e eu contei a história da morte da cachorra para a Manu. Choramos juntos dentro do carro, de tristeza e emoção, pela morte e também por essa cena misteriosa de despedida.
A Isa encontra no armário do quarto delas uma caixinha colorida em formato de dente de desenho animado para guardar dentinhos de leite. É da Manu. Abrimos. Dentro há três ou quatro dentes dela. Pedaços da nossa filha ainda intactos. Fecho e a coloco de volta no armário. Ela havia perdido um (último) dentinho pouco antes de partir. Me lembro bem. Esse último, em vez de guardá-lo, ela preferiu colocar embaixo do travesseiro para a Fada do Dente. Desconfiada, antes de dormir me perguntou se ela ainda devia acreditar na fada. Respondo que enquanto ela acreditar existirá. E que se eu fosse ela, acreditaria. De madrugada troco o dentinho por uma moeda de 1 real. Ela acorda encantada com a mágica realizada e me chama para dizer que sabia que não havia sido um truque meu, porque nesse caso, ela, que tem sono leve, teria sentido alguém mexendo perto da sua cabeça. Ficamos ambos satisfeitos.
Os japoneses costumam usar um boneco chamado Daruma-san para fazer pedidos. Pinta-se um dos olhos quando se faz o pedido, e o outro quando o desejo é realizado. Na estante de casa há dois deles. Cada um dedicado a um bom parto de nossas filhas. Quatro olhos devidamente pintados. Na casa da minha mãe encontro um minissenhor Daruma, novinho. Brinde de aniversário do restaurante Kozaka, o favorito da Manu, e por causa disso local de todas as comemorações familiares.
Chegou a hora de colocar as fichas e esperar o número sorteado enquanto a roleta gira e a bolinha salta sem dar a menor pista de onde irá parar. O que mais nós ainda temos a perder? Vou em frente. Preencho o primeiro olho e peço: “Que nosso reencontro aconteça em breve.” Beijo o sr. Daruma e o guardo no bolso do jeans.
Neste exato momento, enquanto escrevo no escritório da casa de meus pais, cercado por lembranças, mexo no amuleto vermelho arredondado de cerca de 2,5 centímetros de diâmetro e penso em “aceitação e paz de espírito”. Lembro daquela história de que não é possível nomear o lugar que passamos a ocupar desde a nossa tragédia. Reflito um pouco e percebo que, dependendo da narrativa escolhida, o lugar ganha, sim, um nome. Ao pintar o primeiro olho do bonequinho japonês consigo nomear esse “novo” local de onde falamos e passamos a viver: Pais. Pai e mãe da Manu e da Isa.
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Tiago Ferro é editor da e-galáxia e da revista de ensaios Peixe-elétrico.




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