LUTO É DOENÇA?

Quando passa de duas semanas, a tristeza causada pela perda de um ente querido deve ser tratada com remédio e terapia, segundo psiquiatras dos EUA.

 Foto de Olinda Soares Fernandes de Jesus tirada por Antônio Costa/Gazeta do Povo.

Condição da existência ou caso de saúde pública? A sensação de impotência, tristeza e até desespero que caracteriza o luto está prestes a ser reconhecida como uma patologia clínica, passível de tratamento com remédios e terapia. Ainda este ano, o mal-estar provocado pela perda de um ente querido passará a figurar no ISM-5, a quinta edição de uma espécie de manual que cataloga os transtornos mentais, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. Também entrará no rol de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), chamado de ICD, que está em sua 11.ª edição.
A medida, como tudo que envolve o conceito do que é normal na área da saúde mental, é polêmica. O comitê que organiza o ISM-5 entende que se após 14 dias a pessoa ainda estiver de luto, ela pode ser diagnosticada com transtorno mental por um psiquiatra ou psicólogo e, sendo assim, medicada, encaminhada para terapia e até internada, dependendo do caso.
Para o professor de Psicologia da Morte da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Cloves Amorim, essa mudança é temerária. “Aquilo que é tão comum entre nós não pode ser considerado uma patologia”, afirma. Ele explica que o luto é necessário – “um tempo para nos darmos conta da perda que sofremos e para que possamos nos reorganizar e seguir com a vida, apesar da saudade”.
Por isso, os riscos por trás da medida devem ficar claros, segundo o professor. Como quase todo ser humano costuma sofrer por mais de duas semanas pela morte de alguém querido, isso significaria que a maioria da população está doente? “Uma parte dos profissionais está com um olho na caixa registradora e outro na indústria dos medicamentos”, critica.
Amorim lembra que a noção de luto é variável nos EUA, no Brasil e no resto do mundo. “A ideia de que não podemos ser frágeis, ter problemas ou ser tristes é muito forte lá fora, mais do que aqui. A cultura tem uma influência muito grande na forma como percebemos o luto”, analisa.

Definição frágil

Uma das maiores especialistas em luto do país, a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Maria Helena Pereira Franco faz uma série de críticas aos parâmetros que definirão o luto como uma doença. Fundadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (Lelu) na instituição, ela afirma que não faz sentido usar como único critério para o diagnóstico o tempo de luto.
A professora afirma que há questões muito particulares que influenciam nesse processo e que cada pessoa responde de uma forma. Um dos aspectos mais importantes é a relação entre o enlutado e a pessoa que morreu. “No caso de uma mãe que perde o filho jovem, que é um processo antinatural, o luto é diferente do de alguém que perde um pai idoso ou um parente mais distante. É mais intenso, e ainda assim, não se pode dizer que seja patológico.”
Outros aspectos apontados por Maria Helena são a natureza da morte – por doença, violência, acidente ou suicídio, por exemplo –, se foi repentina ou não, e se houve sofrimento, além da idade da pessoa enlutada, já que crianças, adolescentes e adultos respondem de formas diferentes à perda. “Isso precisa ser levado em conta, sob o risco de causarmos um desserviço grande sobre um assunto muito complexo e que não pode ser visto de forma simples.”

Sociedade ignora e até teme o enlutado

Como tudo que envolve a morte, o luto é cercado de tabus e ainda pouco aceito socialmente, apesar de ser vivido cada vez mais publicamente por meio da mídia. Exemplos não faltam: grandes tragédias naturais; mães que perdem os filhos para a violência urbana; e personalidades públicas cuja morte cause comoção.
Estar em luto, hoje, significa escancarar a dor, numa época em que a frustração, a perda e os sentimentos negativos não são aceitáveis, quando tudo deve ser rotulado e então curado – de preferência com medicamentos. “Não há mais espaço para a tristeza. Ficar triste é sinônimo de fracasso, afeta a produtividade. Não se pode perder nunca”, avalia o psicólogo Cloves Amorim, da PUCPR.

Risco

Nesse sentido, classificar o luto, já mal compreendido, como uma doença mental, pode ser arriscado, de acordo com a psicóloga especialista em Saúde Mental Joyce Fischer. Há dois cenários possíveis, ambos perigosos, e que tendem a tornar ainda mais obscuro o assunto, ao invés de lançar-lhe luz.
O primeiro é que, ao demonstrar sinais de luto, uma pessoa já seja considerada mentalmente doente. “Como esse processo não é bem aceito e visto como normal, a tendência é que as pessoas sejam rotuladas como doidas”, afirma. Nesse caso, estariam expostas desnecessariamente a tratamentos e medicamentos, o que poderia, então, de fato, prejudicar sua saúde.
Outra possibilidade é de que, numa tentativa de evitar a rotulação, o enlutado tente esconder sua situação, fingindo que não houve luto, adiando um processo importante para a reorganização da vida. “Isso, sim, pode gerar problemas de saúde, pois quem não vive o luto não consegue dar um tempo a si mesmo para se recompor e seguir adiante. Evita um processo natural, que não podemos negar.”

Ajuda a quem precisa

Mudança dará suporte a quem precisa de tratamento

Classificar o luto como uma doença pode, por outro lado, auxiliar quem realmente precisa encontrar ajuda especializada para superar um sentimento que não passa, gera depressão e afeta o enlutado na vida pessoal e profissional. Além disso, pode preparar melhor os profissionais da área de saúde e educação a ter mais sensibilidade frente ao problema.

A professora da rede pública estadual Olinda Soares Fernandes de Jesus, de 32 anos, é alguém que sofre com a falta de compreensão da sociedade sobre o luto. Em agosto de 2011, ela perdeu a filha Juliana, de pouco mais de um ano, vítima de um tumor no cérebro, diagnosticado dois dias antes da morte. Não se recuperou até agora e sente que ninguém entende o tamanho da dor que vive.
Logo após a morte do bebê, Olinda conta que ficou em choque e não se deu totalmente conta do que ocorrera. Foi durante as festas de fim de ano que “a ficha caiu” e ela se deu conta de que Juliana não voltaria. Quando as aulas recomeçaram, a pressão se tornou insuportável. Ganhou alguns dias de licença, não melhorou, e foi novamente submetida à perícia médica.
“Na segunda vez, o médico me olhou e disse: ‘Sua filha morreu. A morte é irreversível. Aprenda a lidar com isso’. Saí dali chorando. Foi desumano”, diz Olinda, que teve de voltar ao trabalho na semana passada, já que lhe foi negada a licença médica. “As pessoas dizem que é preciso retomar a vida, mas como? A vida não é mais a mesma.”
Hoje, ela tenta se recuperar frequentando um grupo de apoio, o ‘Amigos Solidários na Dor do Luto’, mas gostaria de ter ajuda médica profissional. “Deveria haver maior conhecimento do problema, mais humanidade, maior suporte. Tenho chefes compreensivos, as pessoas tentam me ajudar, mas não é a mesma coisa”, afirma.


Atendimento 

A psicóloga especialista em luto Maria Helena Pereira Franco acredita que classificar o luto como doença pode, em casos específicos como esse, ser importante para a captação de recursos para pesquisa e tratamento do problema. Nessas situações, haveria mais suporte para que o enlutado tivesse seu tratamento custeado por planos de saúde ou pelo SUS e pudesse se ausentar de suas atividades profissionais durante esse atendimento. (VP)

Dor eterna
Episódios que expõem situações em que o luto parece não ter fim:

Desaparecidos da Ditadura Militar (Brasil, 1964 a 1985)O período de exceção que reinou no país por 21 anos deixou, oficialmente, 144 pessoas desaparecidas. São pessoas que sumiram após ser presas ou abordadas pela política de repressão do regime. Provavelmente, foram enterradas em valas comuns, o que impossibilitou que suas famílias as velassem e enterrassem. O fato de o país não ter condenado nenhum militar pelo sumiço e não ter autorizado a abertura de arquivos que dessem pistas sobre onde estão os restos mortais aumenta a angústia das famílias.
World Trade Center (EUA, 2001)O atentado às Torres Gêmeas em Nova Iorque causou 2.749 mortes, dos quais apenas 1.626 tiveram algum resto mortal identificado por meio de exames de DNA. No caso dos outros 1.123, as famílias não receberam qualquer vestígio de tecidos, ossos ou pele que pudessem ser enterrados, simbolizando que aquela pessoa finalmente repousou em um local escolhido por seus entes queridos.
Edifício Liberdade (Rio de Janeiro, 2012)O desabamento deste e de outros dois edifícios no centro da cidade carioca, no dia 25 de janeiro, deixou 17 mortos e cinco pessoas desaparecidas. O entulho já foi retirado do local, e agora, as cinco famílias que ainda não enterraram seus parentes aguardam a análise de DNA dos restos mortais que foram retirados dos detritos. Para essas pessoas, o luto não se encerra até que os mortos sejam identificados.
DesaparecidosMães cujos filhos desapareceram sem deixar vestígio costumam viver uma espécie de luto eterno. Passados vários anos do sumiço, muitas passam a ter certeza de que o filho morreu, mas a ausência de um corpo e a impossibilidade de enterrá-lo fazem com que elas passem repetidamente por um processo semelhante às mães que viram seus filhos morrerem.
Influência
Existem vários aspectos que impactam o luto das pessoas e, por isso, elas agem de formas diferentes. A natureza da morte, por exemplo, exerce influência determinante. A sensação causada pela perda de um jovem morto em um acidente de trânsito repentino é muito diferente da de uma pessoa idosa em fase terminal.

Interesses 

O que está por trás da definição do luto como doença? Para alguns especialistas, não se pode negar o interesse da indústria farmacêutica e de uma classe médica ávida por mais pacientes. A inclusão do luto no rol de doenças psiquiátricas trará consigo uma série de novos remédios e serviços terapêuticos.


Publicado em 25/03/2012 por VANESSA PRATEANO - Comportamento - Vida e Cidadania - Gazeta do Povo 

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