A enfermaria entre a vida e a morte

Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante que curar. Lá, todos os dias eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim? 
por Eliane Brum

De repente, João Barbosa de Lima começou a rir às gargalhadas. Seu corpo devastado pelo câncer se sacudia todo na cama de hospital. Depois de meses sem um sorriso, o iceberg que comprimia seu riso se desprendia dele. “Essa doença me deixou de um jeito que filho me beijava, neto me beijava, mulher me beijava e eu não conseguia sorrir. Estava trancado por dentro”, diz. “Então, meu filho imitou o Costinha, vejam só, o Costinha, e destrancou meu riso.” Banal assim. Grande assim. Daquele dia em diante, João ria sozinho. Puxava um lenço encarnado para enxugar os olhos. E continuou rindo quando foi para casa. E nem queria rir tanto porque lhe doía por dentro. Mas não conseguia mais segurar. João sabia que morreria, mas tinha descoberto também o que o fazia viver. A família ao redor, esse riso à toa, a mulher de uma vida, a vida vivida. 
Essa cena aconteceu numa manhã de sexta-feira na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. No 12º andar, a Enfermaria é temida. Pelos corredores, sussurram que é “a enfermaria da morte”. Para lá só vão aqueles com escassas chances de cura. Mas quem entra na Enfermaria logo se surpreende. Num lugar onde pessoas morrem, há sempre alguém rindo, contando uma história, pequenas grandes cenas como a que abre esta reportagem. E a tristeza é amenizada pela convicção profunda de quem sofre de não estar sozinho, nem para enfrentar a dor física da doença nem para lidar com a dor psíquica da proximidade da morte. 
A Enfermaria de Cuidados Paliativos é um centro de difusão de uma idéia ainda subversiva nos hospitais brasileiros. (Em parte, isso explica o preconceito.) O tratamento ali começa onde a maioria termina. Ao acolher pacientes com a vida abreviada pelo câncer ou por uma doença crônica, defende-se uma prática médica em que cuidar é mais do que curar. “Quando disseram que minha irmã iria para o 12º andar, me aconselharam a não permitir”, diz Tomie Taniyama. “Entrei na Enfermaria apreensiva. Então me encantei. A equipe deu dignidade à minha irmã e conforto para nós, da família.” 
O grande embate travado naquele que, desde o século XX, é o altar da morte – o hospital – e pelos seus sacerdotes modernos – os médicos – trata dos limites da prática médica diante do fim da vida. Na visão hegemônica da medicina ocidental, se não existe chance de cura, não há mais o que fazer pelo doente. E, como é difícil aceitar limites, parte dos médicos apela para procedimentos invasivos e dolorosos na tentativa de prolongar a vida a qualquer preço. Em geral, um preço alto, tanto em recursos financeiros quanto em custo pessoal. Ou, algo mais freqüente em hospitais públicos, abandonam os pacientes com a justificativa de que nada mais podem fazer por ele. 
Na ótica dos paliativistas – profissionais que acreditam no respeito à hora do fim como parte do respeito à totalidade da vida –, é nesse momento que a equipe de saúde pode fazer mais: garantir uma morte sem dor física, os sintomas controlados, o paciente consciente e rodeado por quem ama. Nem antecipar a morte nem esticar a vida, mas garantir que se viva até o fim com dignidade. Essa nova visão do exercício da medicina tem balançado os alicerces da bilionária indústria da saúde – e põe em xeque a visão contemporânea da morte.

Para saber mais pesquise sobre os cuidados paliativos com Dr. Toshio Chiba, maior conhecedor do assunto na área.

Comentários

  1. Perfeita essa reportagem, eu também acho que os cuidados paliativos e a atenção humanitária da enfermagem e o corpo médico, ajudam a amenizar o sofrimento tanto do paciente quanto da família. Apesar de tudo, das lembranças tristes, de cada acontecimento, trago comigo ainda a gratidão da equipe médica da UTI do Hospital Santa Izabel de São Paulo, onde minha filha esteve lá por 1 mês, me permitiram que eu estivesse com ela todos esses dias e até a presença do meu marido e filha , eu via o quanto foi importante pra ela e pra nós. Lá nós permanecemos unidos a ela, até o último momento. Tivemos momentos inesquecíveis, e a palavra mais falada era 'TE AMO '. Isso tudo está guardado no mais profundo de minha alma. Minha filha Jessica, minha estrela me dizia: ... Mãe, que bom que você está aqui comigo! Eu Te Amo... E assim nós continuamos juntas... amor por toda a vida, eternamente.

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    1. Madalena, obrigada pelo seu comentário ,sempre tão esclarecedor, e que tem ajudado tantas pessoas que visitam o nosso blog..
      Os cuidados paliativos dentro dos hospitais e mesmo nas residências, deveriam ser mais cuidados e valorizados e recrutar mais voluntários, que possam ajudar essas famílias neste momento de tão profunda dor e desgaste emocional...
      Com todo o meu carinho e as bençãos de Deus para você e seus familiares...

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