Lutos mal elaborados também matam - ELIANE BRUM

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ebrum@edglobo.com.br 
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
REvista Época


Nesta semana, publiquei uma reportagem na revista impressa chamada “O filho possível”. Eu e o fotógrafo Marcelo Min contamos a história – e as histórias – de uma UTI neonatal  que também cuida dos pais. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), é talvez o único berçário do Brasil que pratica os cuidados paliativos. Como toda unidade neonatal, trabalha com algo ao mesmo tempo terrível e delicado: a morte de quem acabou de nascer. O fim abrupto de uma vida que existia no imenso desejo dos pais – e que não teve tempo de se realizar.

Na maioria das unidades neonatais do país, como na maioria dos hospitais gerais, os profissionais acreditam que seu trabalho termina quando não há como curar um paciente. Na neonatologia do Caism, a equipe de saúde acredita que cuidar da saúde é bem mais do que curar. Muitas vezes não dá para curar. Mas sempre dá para cuidar. E cuidar também salva.

Salva a vida breve do bebê que se vai, ao empreender todos os esforços para que não sinta dor, ao suspender qualquer tratamento invasivo e desnecessário, ao permitir que fique no colo da mãe, do pai, da avó. E salva a vida dos que ficam, ao compreender a dimensão dessa perda para cada família. Ao cuidar com delicadeza dessa morte – e do luto.

Essa prática de saúde entra oficialmente na agenda da medicina brasileira nesta semana. O novo Código de Ética Médica inclui os cuidados paliativos entre as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício da profissão. É o início de um caminho de retorno a uma medicina que enxerga uma pessoa – e não uma doença. Capaz de reconhecer limites e suspender procedimentos invasivos quando eles só servem para causar dor aos pacientes ou lhes roubar a consciência. Os profissionais perdem onipotência – e ganham humanidade.

Os cuidados paliativos surgiram na Inglaterra nos anos 60. No Brasil, é um movimento cada vez mais forte, levado adiante por um punhado de médicos, psicólogos e enfermeiros idealistas, mas ainda distante do cotidiano da maioria dos hospitais. As equipes que trabalham nessa perspectiva cuidam, em geral, de pacientes adultos com câncer e outras doenças com escassas chances de cura.

Em unidades neonatais, é uma raridade. Se é difícil enfrentar a morte no fim da vida, o fim da vida logo no início é dor condenada ao silêncio. A forma que a sociedade encontra para mascarar seu horror é minimizar a importância dessa perda, dizendo às mães variações de frases como estas: “Não se preocupe, logo você vai ter outro filho” ou “Ainda bem que não deu tempo de se apegar, assim você supera rápido”.
O que pouca gente parece compreender é que a vida do bebê, para os pais, não começou no seu nascimento. Iniciou muito antes, quando aquele casal sonhou com um filho, concebeu sua existência. E nele depositou suas melhores esperanças e desejos de continuidade. É uma vida muito mais longa do que horas, dias, semanas, meses. Antes de um bebê existir como indivíduo, para os pais ele já é. E é da forma mais cara para os humanos – como desejo. Quando tudo isso é arrebentado por uma morte precoce, se a família não é bem cuidada, ela se arrebenta inteira.

Para fazer a reportagem, acompanhei famílias nesse processo da doença e da perda. Escutei também mães e pais depois de alguns anos dessa tragédia pessoal. Queria compreender esse momento para poder dar aos leitores a dimensão da importância de cuidar bem do luto. E entender a diferença que a prática dos cuidados paliativos pode fazer nesse fim precoce da vida. O que significa para uma família sepultar um bebê e como uma equipe de saúde pode ajudá-la a seguir adiante.

Na reportagem, contei a história de outros. Aqui, conto a minha. Acredito que nós, repórteres, que pedimos aos outros a generosidade de compartilhar suas histórias mais íntimas e dolorosas com o mundo, temos de ter a grandeza de nos expor em nossa própria humanidade doída. É o exercício que faço algumas vezes nesta coluna.

Algumas pessoas acham que me exponho demais. Eu sempre pedi aos outros que se expusessem demais. Não saberia como continuar fazendo este pedido se não fosse capaz de retribuir a generosidade. Não faço pedidos que não possa fazer a mim mesma. Não peço a ninguém algo que eu mesma não possa dar. É como estabeleci meus limites na profissão.

Sou filha de uma família profundamente marcada pelo luto de uma morte precoce. Minha irmã, a terceira filha dos meus pais, depois de dois meninos, morreu aos cinco meses. Sobre esse momento, minha mãe sempre diz. “Eu chamei o pai para vê-la brincando no banho à tarde. À noite ela estava com febre e com manchas pelo corpo. No outro dia, estava morta”.

Acho que hoje, prestes a completar 75 anos, minha mãe ainda não compreende como é possível perder uma filha assim. Ainda mantém no rosto aquela expressão confusa, de alguém que, de repente, teve uma parte de si mesma roubada com uma violência desproporcional. No velório, ela surpreendia a si mesma olhando no relógio para ver se não estava na hora da mamadeira. Só então se dava conta de que era seu bebê que estava no caixão.

Minha irmã esteve neste mundo, de fato, por cinco meses – mas sua morte vive com minha mãe e com todos nós há quase cinco décadas. Eu fui a quarta e última filha. Não conheci minha irmã. Para mim, ela sempre pareceu mais viva do qualquer outra pessoa. Penso, com tudo o que sei hoje, que esta presença tão forte foi causada por um luto insepulto. Minha irmã morreu de meningite meningocócica. Mas o diagnóstico só chegou dez anos depois de sua morte. Até então, os médicos não entendiam o que a havia matado. De repente, tão rápido.

Minha mãe passou anos se perguntando o que havia feito de errado. Hoje, ao conversar com mães que perderam seus bebês, percebo que elas também se perguntaram. E se culparam. Só superaram porque tiveram a sorte de encontrar profissionais conscientes de seu lugar nesse luto. Uma das missões mais importantes de uma boa equipe de saúde é exatamente dar acesso a todos os exames e a toda possibilidade de investigação, para que não paire nenhuma dúvida sobre o diagnóstico. Esclarecer a causa da morte com o maior número de informações qualificadas é fundamental para que a perda possa ser superada. E que culpas infundadas não se instalem como pedras pelo resto da vida.

Em Ijuí, no início dos anos 60, os médicos não tinham nenhuma ideia do que havia acontecido com minha irmã. E a cidade pequena, como a literatura conta tão bem, pode ser o mais cruel dos mundos diante da fragilidade do outro. Logo circularam pela cidade as mais variadas versões sobre o que tinha matado minha irmã. Em uma delas, minha mãe havia deixado leite estragado na mamadeira. Como se não bastasse toda a dor e as perguntas sem respostas, minha mãe era apontada como culpada por alguns. Permaneceu mais de um ano em depressão profunda.

Quando o diagnóstico finalmente chegou, já era tarde para preencher o buraco que se abriu dentro dela. E nós, que sobrevivemos, estávamos acostumados demais a conviver com uma filha para sempre perfeita que, infelizmente, nunca teve a chance de errar. A dor dos irmãos daquele que morre ainda é um capítulo nebuloso na história do luto. Ainda hoje, eles são esquecidos na hora de cuidar da família. Nasci com a missão impossível de apagar a dor da minha mãe, de todos. Logo eu, tão imperfeita. Passei boa parte da vida culpada por fracassar e sobreviver.

Acho que só agora, depois desta reportagem, compreendo minha mãe por inteiro. Ela foi massacrada demais para ter a chance de sepultar minha irmã. Da forma que lhe foi possível, empreendeu seus melhores esforços para mantê-la viva. O que aconteceu com nossa família ainda acontece muito nos dias de hoje, nas pequenas e nas grandes cidades. Acontece sempre que a dimensão dessa perda não é compreendida ou tratada. Sempre que uma equipe de saúde se equivoca – e pensa que seu trabalho acaba quando o bebê morre, apesar de todos os esforços de cura.

Numa visão mais larga da saúde, a função de uma equipe é ajudar essa família a sepultar – também simbolicamente – esse bebê. É importante que essa vida seja não esquecida – mas lembrada como uma história que, apesar de curta, teve bons e maus momentos, como todas as vidas. Lembrada em fotos e recordações como parte da trajetória daquela família. Uma trajetória que segue.

Para isso, é necessário abarcar a dimensão dessa perda. Passei parte da minha vida sem entender como alguém que só tinha vivido cinco meses, que morreu antes de falar uma única palavra, pudesse ser tão importante. Quando, depois de adulta, testemunhei amigas que perderam seus bebês, ainda na gravidez, também não entendia por que sofriam tanto. Afinal, aquela criança nem tinha existido.

Só agora alcanço o tamanho da minha ignorância. A vida de um bebê começa sempre muito antes, na cabeça de cada pai, de cada mãe. E inicia por suas mais caras esperanças. Quando termina, é óbvio que só pode ser avassalador. Se esses pais, essa família, não forem cuidados, perdem partes essenciais de si mesmos – partes sem as quais não conseguem viver por inteiro.

Sempre acreditei que meu pai havia sofrido menos que minha mãe por essa morte. Ele raramente falava no assunto. Minha irmã não parecia tão presente em sua vida, o que me dava enorme alívio. Há dois anos, resolvi registrar a história dos meus pais. Eles me contam a vida, eu gravo. Tenho feito descobertas extraordinárias nesse processo. Uma delas foi a dor do meu pai.

Ele me contou, rosto contraído e voz embargada, que o maior sofrimento de sua vida foi a morte da minha irmã. Fiquei paralisada. Aquele homem, que ficara órfão de pai e mãe antes dos 15 anos, que havia perdido quatro irmãos ainda na infância, me dizia que a maior dor de sua vida foi perder seu bebê.

Só então comecei a compreender. Ao fazer esta reportagem, testemunhei o lugar ambíguo dos homens na morte de um bebê. Há um reconhecimento social de que, por ter gerado, a mulher é, se não a única, a maior sofredora. Muitas vezes seu sofrimento é tão aniquilador que não deixa espaço para a dor do homem, do pai daquele bebê.

O homem, que foi educado para suportar a dor em silêncio, para proteger a mulher, para ser o provedor e o esteio – e ainda hoje estes papéis são mais cimentados do que parece – aceita esse lugar menor no luto. Como dor não se joga para debaixo do tapete impunemente, essa incompreensão mútua costuma gerar muita confusão e conflitos. E às vezes até o fim do casamento.

Acho que meu pai, à sua maneira, deu um lugar para essa morte, para o seu luto. Ele tem uma caixinha de madeira, com chave, bem antiga, onde mantém a salvo pequenas preciosidades de uma vida inteira. Dia desses descobri que lá dentro, junto com as medalhas do colégio, ele guarda a participação de falecimento da minha irmã. Impecavelmente recortada e até hoje em perfeito estado, como tudo que é dele. Minha irmã é lembrança, parte de sua travessia.

Ao terminar esse texto, enviei aos meus pais para que eles me autorizassem a contar uma história que também é minha – mas é deles. Algumas horas depois meu pai me ligou. Profundamente comovido, ele queria me contar um pouco mais. Para que eu pudesse alcançar. “Na noite após o enterro houve um temporal terrível em Ijuí, com raios e trovões”, disse. “Nós queríamos protegê-la e não podíamos. Ela estava lá, sozinha, e não podíamos cuidar dela”. Prestes a completar 80 anos, meu pai ainda sofre com sua impotência diante da morte da filha. Seu bebê enterrado, debaixo da tempestade.


Conto tudo isso aqui porque acredito que, se minha família tivesse tido a chance de ser bem cuidada na sua perda e no seu luto, teríamos sido poupados de muita dor e desencontros. Ao fazer a reportagem, não pude deixar de pensar como nossa vida teria sido diferente se, num rasgo do tempo e do espaço, tivéssemos encontrado a pediatra Jussara Lima e Souza, da neonatologia do Caism, e a equipe dos cuidados paliativos.

Destinos são alterados para melhor quando uma equipe de hospital compreende que saúde é algo bem mais amplo do que tentar curar alguém de vírus, bactérias, tumores e doenças variadas. Infelizmente, a medicina nunca vai conseguir curar tudo. Médicos honestos sabem que se cura muito pouco ainda. Infelizmente, homens e mulheres, a cada ano, vão continuar perdendo bebês. Se, depois de todas as tentativas, não houver como salvá-los, é preciso compreender que, pelo menos, é possível salvar aquela família. Cuidando dela.

Conto esta história na esperança que, agora e no futuro, homens e mulheres possam ter a chance de ser compreendidos na enormidade da sua perda e fazer um luto que torne possível seguir a vida. Transformar a dor em algo ativo é parte da superação da perda. De certo modo, é o que tento fazer aqui. Escrevo para transformar. E sou transformada pelo que escrevo. Pego meu luto por tantos desencontros e o transformo em história contada, na esperança de dar a contribuição que me é possível para o início de uma mudança mais profunda do nosso olhar sobre a morte. E sobre a vida.

fonte:http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI132690-15230,00-A+MAE+ORFA.html

Comentários

  1. Maravilhosa esta reportagem! Carrega grandes verdades muitas vezes encobertas!!!!!parabens e obrigada por compartilhar!!!

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